O Livro de Henry, um filme profundo de 2017, relata o inconformismo de um menino diante do sofrimento de uma vizinha que é violentada sexualmente pelo padrasto. Os esforços de Henry (Jaeden Lieberher) para ajudar a vizinha nos faz refletir sobre a indiferença das pessoas diante das aflições do outro e as motivações para ajudar.

Segundo dados recentes da Fundação Abrinq e Childhood Brasil, 72% dos registros de violência sexual aconteceram contra pessoas que tinham até dezessete anos. Essas agressões acontecem principalmente em casa, e muitas das vezes praticadas pelo pai ou padrasto. Dados anteriores apontavam que os pais abusavam mais que os padrastos. Nessa atualização os dois aparecem com porcentagens iguais.

O médico Jairo Bouer discorreu sobre um estudo norte-americano. Nele as estatísticas são impactantes. Segundo a pesquisa, uma em cada quatro garotas e um em cada seis garotos serão abusados sexualmente antes de completar 18 anos.

No filme, Christina, interpretada por Maddie Ziegler, é órfã de mãe e sofre abusos constantes. O comportamento da menina demonstrava algo de errado, mas nenhuma investigação tinha continuidade, pois seu padrasto era um policial influente. Toda e qualquer desconfiança caía logo no esquecimento.

O clímax do longa-metragem gira em torno de uma apresentação de ballet em um show de talentos da escola. Christina exprime sua dor, canalizando emoções por meio dos movimentos do corpo. Naquele momento entendemos o que Dostoiévski quis dizer ao afirmar que a arte salvará o mundo.  Durante a apresentação, a diretora da escola se sensibiliza e encontra coragem para denunciar o padrasto. A arte tem o poder de sensibilizar e nos conscientizar sobre a necessidade de posicionamentos.

Quando discorremos sobre o abuso, percebemos que a educação sexual é uma necessidade. As crianças precisam saber identificar uma situação abusiva e a reagir diante delas. Abuso sexual não é somente penetração. Temos toques inapropriados, “brincadeiras” nada saudáveis, olhares que intimidam…

Segundo Jairo Bouer, é importante que as crianças sejam orientadas em várias ocasiões. A primeira conversa pode ser iniciada quando elas aprendem a nomear as partes íntimas. Uma sugestão é utilizar a literatura para abordar o assunto.

E devemos lembrar que inexiste consensualidade quando se trata de criança ou adolescente. Ao depararmos com situações abusivas, devemos denunciar pelo Disque 100. O caso será encaminhado aos órgãos competentes em 24 horas. Precisamos ficar atentos aos possíveis sinais de abuso, como mudanças comportamentais, queda na frequência ou rendimento escolar, comportamento sexual inadequado, excesso de sono, falta de concentração, isolamento, baixa autoestima, depressão, automutilação, entre outros. Muitas crianças denunciam o abuso por meio de desenhos.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou 66 mil registros de estupros em 2019.  Ainda existe uma subnotificação, que acontece por vários fatores. Muitos estados enviam dados ao Ministério da Saúde somente dos atendimentos realizados em hospitais públicos. Segundo especialistas da área, muitos agentes de saúde resistem em fazer a notificação, que deveria ser compulsória. A superexposição da vítima durante o acolhimento é outra deficiência profissional.

Atualmente contamos com a Lei da Escuta Protetiva, que foi aprovada em 2017 pelo governo federal, para diminuir o mínimo possível a necessidade do relato da criança sobre o abuso. Cada vez que a vítima precisa relatar o que lhe aconteceu, ela revive o sofrimento. É preciso uma regulamentação desse acolhimento, com a finalidade de evitar a superexposição.

As experiências abusivas podem trazer dificuldades futuras de relacionamento e impossibilitar a vivência de uma sexualidade saudável.

Por isso, fiquemos atentos a qualquer indício de violência contra crianças e adolescentes. Como foi relatado no filme, a apatia é a pior coisa do mundo.

Andrea Viviana Taubman, autora do livro “Não me toca, seu boboca” afirma que melhor do que finais felizes é a garantia de inícios felizes.

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Aline Esteves, sexóloga e psicanalista 
www.alineesteves.com
insta: @aline.esteves.sexologia